(...) Vai, vai... para sempre adeus! Para sempre aos olhos meus Sumido seja o clarão De tua divina estrela. Faltam-me olhos e razão Para a ver, para entendê-la: Alta está no firmamento De mais, e de mais é bela Para o baixo pensamento Com que em má hora a fitei; Falso e vil o encantamento Com que a luz lhe fascinei. Que volte a sua beleza Do azul do céu à pureza, E que a mim me deixe aqui Nas trevas em que nasci, Trevas negras, densas, feias, Como é negro este aleijão Donde me vem sangue às veias, Este que foi coração, Este que amar-te não sabe Porque é só terra - e não cabe Nele uma ideia dos Céus ... Oh!, vai, vai; deixa-me adeus. Almeida Garrett |
Vou à estante desarrumar, destacar, desviar a poesia que incomoda nos livros fechados.
julho 27, 2006
Adeus
julho 25, 2006
Estátua Falsa
Só de ouro falso os meus olhos se douram; Sou esfinge sem mistério no poente. A tristeza das coisas que não foram Na minha'alma desceu veladamente. Na minha dor quebram-se espadas de ânsia, Gomos de luz em treva se misturam. As sombras que eu dimano não perduram, Como Ontem, para mim, Hoje é distância. Já não estremeço em face do segredo; Nada me aloira já, nada me aterra: A vida corre sobre mim em guerra, E nem sequer um arrepio de medo! Sou estrela ébria que perdeu os céus, Sereia louca que deixou o mar; Sou templo prestes a ruir sem deus, Estátua falsa ainda erguida ao ar... Mário de Sá-Carneiro |
julho 20, 2006
Importuna Razão, não me persigas
Importuna Razão, não me persigas; Cesse a ríspida voz que em vão murmura; Se a lei de Amor, se a força da ternura Nem domas, nem contrastas, nem mitigas; Se acusas os mortais, e os não abrigas, Se (conhecendo o mal) não dás a cura, Deixa-me apreciar minha loucura, Importuna Razão, não me persigas. É teu fim, teu projecto encher de pejo Esta alma, frágil vítima daquela Que, injusta e vária, noutros laços vejo. Queres que fuja de Marília bela, Que a maldiga, a desdenhe; e o meu desejo É carpir, delirar, morrer por ela. |
Bocage
julho 18, 2006
5 décimas
5 décimas de graus Celsius suficientes para aquecer entorpecem os sentidos sem paladar, sem olfacto também quase sem ver na audição só zumbidos a pele sensível ao tacto 5 décimas de graus Celsius só com um par de comprimidos reduzem de todo a vontade o pensamento abranda impedem toda e qualquer actividade nem de pé, nem sentado nem na cama bem se anda 5 décimas de graus Celsius já arrefeceu a temperatura mas não se refizeram os sentidos que passe esta tremura de fazer perder a paciência e os preciosos dias dispendidos adc |
julho 13, 2006
O PRIMEIRO DIA
A princípio é simples, anda-se sózinho passa-se nas ruas bem devagarinho está-se bem no silêncio e no borborinho bebem-se as certezas num copo de vinho e vem-nos à memória uma frase batida hoje é o primeiro dia do resto da tua vida Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo dá-se a volta ao medo, dá-se a volta ao mundo diz-se do passado, que está moribundo bebe-se o alento num copo sem fundo e vem-nos à memória uma frase batida hoje é o primeiro dia do resto da tua vida E é então que amigos nos oferecem leito entra-se cansado e sai-se refeito luta-se por tudo o que se leva a peito bebe-se, come-se e alguém nos diz: bom proveito e vem-nos à memória uma frase batida hoje é o primeiro dia do resto da tua vida Depois vêm cansaços e o corpo fraqueja olha-se para dentro e já pouco sobeja pede-se o descanso, por curto que seja apagam-se dúvidas num mar de cerveja e vem-nos à memória uma frase batida hoje é o primeiro dia do resto da tua vida Enfim duma escolha faz-se um desafio enfrenta-se a vida de fio a pavio navega-se sem mar, sem vela ou navio bebe-se a coragem até dum copo vazio e vem-nos à memória uma frase batida hoje é o primeiro dia do resto da tua vida E entretanto o tempo fez cinza da brasa e outra maré cheia virá da maré vaza nasce um novo dia e no braço outra asa brinda-se aos amores com o vinho da casa e vem-nos à memória uma frase batida hoje é o primeiro dia do resto da tua vida Sérgio Godinho |
julho 09, 2006
julho 02, 2006
Adiamento
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã... Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã E, assim será possível; mas hoje não... Não, hoje nada; hoje não posso. A persistência confusa da minha subjectividade objectiva, O sono da minha vida real, intercalado, O cansaço antecipado e infinito, Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico... Esta espécie de alma... Só depois de amanhã... Hoje quero preparar-me, Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte... Ele é que é decisivo. Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos... Amanhã é o dia dos planos. Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo; Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã... Tenho vontade de chorar, Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro... Não, não queiram saber, é segredo, não digo. Só depois de amanhã... (...) Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã... Sim, talvez só depois de amanhã... (...) |
Álvaro de Campos
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